por Ana Goelzer*
Antes de começar a ler este texto tenho um pedido para lhe fazer: se estiver no escritório feche a porta, tire o salto e coloque os pés em cima da mesa, respire fundo e pense em um momento feliz. Agora sim, boa leitura!
Em 1950, Mario Goelzer, meu avô, foi homenageado em Passo Fundo, interior do Rio Grande do Sul, por ser pioneiro em plantar trigo com lavoura mecanizada, desafiando a crença de que “só nas terras de mato que o trigo dá”. Esta inovação e desafio trouxe uma nova perspectiva para o plantio. Nesta época, ele já era casado com Otília Morsch Goelzer, profissão: mulher, mãe de sete filhos. Dentre eles, minha mãe.
Do trigo vem a farinha e com o levain, vem o pão, aquele que é dividido e alimenta a todos.
Ainda hoje me lembro do pão que minha avó fazia, pequeno, redondinho e quentinho, que enchia nossa alma e nossa barriga no meio da tarde. Minha avó não foi presidente de empresa, naquela época não tinha disso, mas foi uma grande CEO da família e de quem precisasse de ajuda. A Vó Otilia poderia ter sido enfermeira, quituteira, educadora, mas foi esposa, mãe, amiga. Mulher de receitas incríveis. Tanto que o gosto pela cozinha foi passando de geração em geração. Segundo uma de minhas irmãs, Ana Marta: “Tradição familiar, doces e salgados eram e são ainda temperados com afeto e também com o desejo de transmitir as receitas secretas, aprendidas, transformadas, inventadas.”
Minha mãe, que completou 86 anos no mês passado, foi pioneira como o pai e é uma mulher tão incrível como a mãe e a avó. Em uma época em que era importante casar, ela decidiu estudar, foi para a cidade grande -- não em busca de sonhos, mas da vida. Cursou a faculdade de pedagogia e, em Porto Alegre, conheceu meu pai, cinco anos mais novo. Sempre nos ensinou a ter dignidade no trabalho, na vida e nas relações. E sempre trabalhou enquanto dava exemplo para seus seis filhos em torno da mesa – houve um tempo em que as refeições eram feitas em família, hoje fazemos isso aos sábados, bem como alguns lanches da tarde. Sem pretensões de chef. Sem competição pelo melhor prato ou sabor.
Ao redor da mesa, tudo se mistura:, lembranças, imaginação, passado, presente e futuro.
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"Podemos, sim, sair da cozinha, mas não precisamos nos livrar dela" |
Mesmo com esse exemplo, um dia achei que ser uma super mulher bastaria, que buscar uma colocação profissional, um salário, ou mesmo empreender, traria o que eu achava que me faltava. Fiz escolhas: coloquei minha carreira acima de tudo, abdiquei de ter filhos, afinal, não tinha muita paciência com os outros e nem comigo. A busca pela perfeição parecia o melhor caminho. Nesta época, as relações ficaram difíceis, havia a dualidade entre a libertação da família e a busca pela realização profissional e sentar à mesa ficou complicado. De repente, a gente vê esvaziar a mala das lembranças, se vê apegada a valores que não são femininos, e aí vem a tristeza de não nos sentirmos boas o suficiente, merecedoras o suficiente. Caímos na ilusão de que uma bolsa ou um sapato vai substituir os almoços de sábado com quem nos quer bem. Nos decepcionamos quando nos damos conta de que nada disso faz sentido de verdade.
A ficha cai.
E com ela vem o desejo do balanço, do equilíbrio. Podemos, sim, sair da cozinha, mas não precisamos nos livrar dela. Podemos gostar de lavar a louça do almoço, sem nos acharmos pequenas. Sinto o cheiro das lembranças, o sentido dos abraços (muitos não dados) e o sabor da convivência, que por mais difícil que possa vir a ser em alguns momentos, sempre vale a pena. Ano passado, ouvi uma TEDx talk do TEDxHouston (uma palestra de um TEDx que é um evento destinado a espalhar ideias que valem à pena) no site do TED.com, , que falava sobre vulnerabilidade. Me bateu forte. Ouvi que não preciso mais ser uma mulher maravilha, que posso ter feito escolhas erradas, mas que ainda dá tempo de mudar. Pense bem. Não levar o filho na escola, não almoçar em família porque você tem compromissos. Sério mesmo? Quando você tiver a idade da minha mãe, que histórias terá para contar? Do que você vai ter saudade?
Brenee Brow, que deu esta TEDxtalk diz: “Precisamos de nossas vidas de volta. É hora de recuperar os dons de imperfeição - a coragem de ser real, a compaixão de amar a nós mesmos e aos outros e a conexão que dá verdadeiro propósito e significado à vida. Estes são os dons que trazem o amor, o riso, a gratidão, empatia e alegria para nossas vidas.” E “A raiz da palavra "coragem" é cor - no latim, cor é palavra latina para "coração". Precisa dizer mais?
Minha mãe costuma dizer que família é bom em álbum de fotografia. Esta, talvez, seja a maior mentira que ela tenha contado. Ainda bem que não acreditamos. A partir do exemplo dela, eu digo: puxe a cadeira, arrume a mesa, ponha memórias no seu coração e amor nas suas ações. No final, é só o que importa.
* Esse texto foi publicado por Ana Goelzer na revista Você SA - Especial Mulheres - Junho de 2012.